Filmes da África e diáspora

Por Pedro A. Caribé

O alvoraço se fez na cidade quando A Grande feira (PIRES, 1962) estreou com algo incomum nas telas: na trama uma personagem negra se impõe na narrativa, Maria da Feira, interpretada pela gaúcha Luiza Maranhão.

No enredo a feira de Água de Meninos é o centro dos acontecimentos narrados por Cuica de Santo Amaro, envoltos por gente como Zeca Diabo, o personagem de Antônio Sampaio, que viria ser conhecido como Antônio Pitanga.  

O resultado foi a obra de maior rentabilidade na história das salas da capital baiana[i], algo que estimulou os produtores locais a romper as barreiras do mercado de exibição e distribuição. Pois, na análise de Walter da Silveira em 1959 a programação era dominada por filmes e produtores associados a Hollywood, e mesmo os donos de sala nativos eram indiferentes ao desenvolvimento de uma indústria local

O parque exibidor entre os 1950 e 1960 seguiu a tendência nacional, dinamizado com inaugurações e reformas para instalar o ar-condicionado e imagens coloridas (FREIRE; ZAPATA, 2017)[ii].

Segundo levantamento de Leal e Leal Filho (2015) novas salas aparecem no Rio Vermelho, Itapagipe, Engenho Velho de Brotas, Liberdade, Uruguai e na Cidade Nova, onde o Cinema Mercúrio tinha capacidade para 580 pessoas.  Já no secular centro o Cine Guarany, o Tupy, o Jandaia, o Pax e o Cine Popular têm setores ou horários mais baratos para muitos corpos negros que residiam por ali, nos arredores ou nas linhas dos bondes que desaguavam.

Luiza Bairros (1988) aponta que também é tempo de uma dinamização da economia local, frente os investimentos na indústria petrolífera, que por sua vez, não alteram as desigualdades raciais nas relações de trabalho de um estado que inicia os anos 1950 com 71,7% da força de trabalho autodeclarada negra, permeada por rendas salariais mais baixas em relação aos brancos, e altas taxas de analfabetismo: 84% entre pretos e 76% entre pardos.

A feira era o pulso econômico para essa maioria em uma cidade dinâmica e assimétrica analisada pelo jovem Milton Santos em estudo publicado pela primeira vez em 1957 a partir do Centro Histórico:

Durante o dia, esse centro, verdadeiro nós de comunicações, anima-se com a passagem de milhares de veículos de todos os tipos e idades, angustiosa e incessante circulação que dá, talvez, uma ideia exagerada do dinamismo próprio da cidade. A circulação dos baianos, também considerável, aumenta nos últimos momentos da tarde quando retoma uma certa animação durante a entrada e saída dos cinemas. Aliás, esse centro jamais fica inteiramente deserto, mesmo nas horas mortas. Se as casas novas são habitadas, as antigas abrigam uma população pobre. (SANTOS, 2008, p. 102-103).

O perfil da população desse estudo tem como base o Pelourinho, onde famílias preferiam transformar sobrados até em cortiços, rodeados de igrejas e cinemas, a ter que residir nos vales mais distantes ou nas crescentes invasões.

Os habitantes, de maioria feminina, tinham o emprego doméstico em proporção superior à média da cidade: “na maior parte dos casos uma forma de subemprego, pois são admitidas com salários quase miseráveis, para obterem alimentação e alojamento” (SANTOS, 2008, p. 51).

Já a maioria masculina tinha à disposição os biscates do trabalho autônomo, a atividade braçal no porto e, quem sabe, carteira de trabalho em posições mais baixas no comércio e ou na indústria.

No mesmo perímetro, o geógrafo encontrou outros endossos sobre o perfil social da época, com muitas pessoas oriundas de zonas rurais, com baixa escolaridade e relativa frequência às salas de cinema – média de uma vez por semana.

Daí, que o público em A Grande Feira se encontra com ideal de captar como as pessoas de um lugar vivem, algo já presente nos documentários Entre o mar o tenda (1953) de Alexandre Robatto, e Um dia na rampa (1960) de Luiz Paulino dos Santos.

Um ideal invocado por Walter da Silveira sob influência de movimentos neorrealistas, que o faziam justificar a refutação às representações tidas como caricatas que circularam mundo à fora: “É triste ver como a Senhora Carmem Miranda está desacreditando o samba e o traje típico das nossas baianas” (SILVEIRA, 1943).

Mas a presença do público para aclamar este filme baiano também é uma refutação à avaliação de Walter da Silveira de que o público tinha mal gosto e que, assim como os grandes empresários, determina uma programação pouco afeita à diversidade: 

O gosto do público, a sua preferência, conduz à escolha da fita. E, sem dúvida, a julgar pelo ano de 1958, como por todos os anteriores, o cômico banal – dir-se-ia melhor: o cômico grosseiro -, o melodrama vulgar, o erótico amoral constituem o centro do interesse do público. (SILVEIRA, 1959b)               

Para mudar o que tinha nas telas, só tendo as suas próprias salas, ou fazendo os seus próprios filmes.

Dessa maneira, um grupo de feirantes se organizou para financiar uma produção que pudesse colocar o ponto de vista daqueles que sofriam com a tentativa de expulsão e toda a sorte de estereótipos presentes em A Grande Feira.  

Foi assim que Sol Sobre a Lama (VIANNY, 1964) tornou-se o primeiro filme colorido aqui realizado, e um ensaio a fim de consolidar uma indústria cinematográfica na Bahia. Na trama os feirantes enfrentam o exército para tentar demover uma draga que impediria o atracamento dos saveiros, e logo depois o fogo se alastra nas construções de madeira e taipa. Só que a obra foi um fracasso: o diretor entrou com processo de direitos autorais contrário às modificações na montagem final, a retirando do circuito enquanto os cartazes e a programação dos cinemas no país a esperavam.  Coincidência, ou não, naqueles mesmos dias as baionetas se prostavam para a ditadura militar, e a feira de Água de Meninos é consumida por um fogo criminoso ateado pela petrolífera Shell.

Um recado do destino para aqueles que pretendiam ter autonomia com a venda de produtos na feira, ou ao fazer e comercializar os seus filmes às salas de cinema.

 

  Feirantes enfrentam militares para manter a feira de Água de Meninos em Sol sobre a lama.

 

Referências:

BAIRROS, Luiza. Pecados do “paraíso tropical”: o negro na força de trabalho da Bahia, 1950-1980 In: REIS, José J. (Org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FREIRE, Rafael de Luna; ZAPATA, Natasha Hernandez Almeida. Quantas salas de cinema existiram no Brasil? Reflexões sobre a dimensão e características do circuito exibidor brasileiro. Significação, São Paulo, v. 44, n. 48, pp. 176-201, 2017.

LEAL, Geraldo da Costa; LEAL FILHO, Luis. Um cinema chamado saudade. Salvador: Assembleia Legislativa, 2015.

SANTOS, Milton. O centro da cidade de Salvador: estudo de geografia humana. São Paulo: Edusp; SALVADOR: Edufba, 2008.

SILVEIRA, Walter. Jornal Diário de Notícias. Panorama.09.02.1943. In DIAS, José Humberto (org.). Walter da Silveira: o eterno e o efêmero. v.  2. Salvador: Oiti Produções Culturais, 2006.

________, Walter. Jornal Diário de Notícias. Redenção: Passado e futuro do cinema na Bahia (II). 15.03.1959a. In DIAS, José Humberto (org.). Walter da Silveira: o eterno e o efêmero. v.  2. Salvador: Oiti Produções Culturais, 2006.

_________, Walter. Jornal Diário de Notícias. Posição de Cinema: 1958. 04.01.1959b. In DIAS, José Humberto (org.). Walter da Silveira: o eterno e o efêmero. v.  2. Salvador: Oiti Produções Culturais, 2006.

___________, Walter. Revista do Rotary Club da Bahia. Possibilidades do cinema baiano. 25.01.1962. In DIAS, 2006

Pedro A. Caribé é soteropolitano, tem 37 anos, e dedica-se aos estudos sobre mídia, audiovisual, e, ou cinema negro no Brasil. Jornalista graduado na UFBA, tem formação voltada às políticas do audiovisual registrada no mestrado em comunicação na UNB sobre a Lei da Tv por Assinatura (12.485/2011). No mesmo programa defende a tese “Cinema de Terreiro: o audiovisual negro de Luiz Orlando nos cineclubes em Salvador”, 2019. Lecionou no curso de jornalismo e multimeios da UNEB/Juazeiro (2018-2019). Coordena o museu digital “Cinema de Terreiro”, um espaço com acervo e memória do cinema negro na cidade de Salvador.

 

[i] “Nenhum filme estrangeiro teve público maior. Quando exibido num cinema de segunda categoria, cujo preço do ingresso estava vinte cruzeiros a menos que o cobrado pelas salas de primeira categoria, rendeu, numa semana, acima de um milhão e duzentos mil cruzeiros – o que, em números relativos, significa o recorde de arrecadação em todos os tempos, nesta cidade” SILVEIRA, 1962.

[ii] A curva crescente é desde o pós-guerra mundial (1945), quando o país tinha cerca de 1500 salas de cinema. No fim dos anos 1950 uma atualização das fontes primárias disponíveis aponta 3500 cinemas ou cineteatros.